Brenda Lee: o Anjo da Guarda das travestis brasileiras durante os anos sombrios da AIDS
[#MêsDoOrgulho] Conheça a história esquecida da mulher que abriu as portas da própria casa para receber os doentes e abandonados pelo poder público durante os anos 1980
Olá, tudo bem? Murillo, aqui :D
Dá para acreditar que essa é a penúltima edição de junho? Mais uma semana se passou desde nosso último encontro. Espero que tudo tenha ido bem.
O friozinho chegou aqui no cerrado. Começo os dias debaixo de três cobertas, lutando pra sair delas. Não que seja todo esse frio, se considerarmos o ponto de vista “sudestino” do país. Mas, para um goiano magrelo acostumado com máximas diárias de 32º, quando batem os 22º é motivo para não esquentar mais os pés.
Enquanto eu me esquento aqui, fique com mais uma edição da nossa news — que está lindíssima!
Um abração!
Murillo Costa
Brenda Lee: o Anjo da Guarda das travestis brasileiras durante os anos sombrios da AIDS
Brenda Lee é sinônimo de amor, abnegação, solidariedade e luta. Sua vida é um exemplo poderoso de como a empatia e a determinação podem transformar vidas e comunidades inteiras. Conheça a travesti que fez de sua própria casa a casa de pessoas abandonadas pelo poder público durante os anos mais tensos da pandemia de AIDS.
Um símbolo de resistência e solidariedade
Nascida em 10 de janeiro de 1948, em Bodocó, Pernambuco, Brenda Lee foi uma figura emblemática na luta pelos direitos das pessoas trans e travestis no Brasil. Sua trajetória de vida, marcada por desafios e superações, transformou-a em um ícone de resistência e um verdadeiro anjo da guarda para muitas pessoas marginalizadas.
Na década de 1970, Brenda, ainda jovem, enfrentou a dura realidade de viver como travesti em uma sociedade profundamente conservadora e preconceituosa. Apesar dos obstáculos, sua coragem e determinação foram essenciais para abrir caminhos e criar espaços seguros para outras travestis.
“Eu sabia que precisava fazer algo, não apenas por mim, mas por todas nós.”
O Palácio das Princesas
O primeiro caso brasileiro de HIV foi registrado em 1980, na cidade de São Paulo. Três anos depois, em 1983, 1.283 pessoas no país morreram devido à doença. Naquela década, o Brasil enfrentava uma forte crise econômica, com altas taxas de inflação, desemprego e endividamento externo.
Além disso, a sociedade viu ascender grupos neoliberais no poder executivo, que priorizavam a redução do tamanho do Estado e a privatização de serviços públicos. Isso impactou negativamente o financiamento de programas de prevenção e tratamento da AIDS.
Grupos religiosos conservadores exerceram influência significativa na política brasileira na década de 1980. Eles frequentemente se opunham a campanhas de prevenção à AIDS, especialmente aquelas relacionadas à distribuição de preservativos e educação sexual.
Para completar o quadro, desinformação sobre a doença e estigmatização das pessoas vivendo com HIV/AIDS inundaram o senso comum. Como geralmente é, coube aos próprios marginalizados organizarem-se e cuidarem-se uns dos outros.
Em 1984, Brenda Lee fundou a Casa de Apoio Brenda Lee, também chamada de “Palácio das Princesas”, uma instituição dedicada ao acolhimento de travestis e pessoas vivendo com HIV/AIDS. Localizada no bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro, a casa rapidamente se tornou um refúgio seguro para aqueles que eram frequentemente rejeitados pela família e pela sociedade.
As pessoas atendidas por Brenda tinha acesso a apoio psicológico e tratamentos médicos. Ela acreditava na importância de proporcionar um ambiente de amor e compreensão. A influência de Brenda Lee foi além das paredes da Casa de Apoio. Sua luta por direitos humanos e inclusão social ganhou notoriedade e respeito. Em 1992, durante a Conferência Internacional sobre AIDS realizada em Amsterdã, Brenda representou o Brasil, levando a voz das travestis brasileiras para um palco global.
O legado de Brenda Lee
A dedicação de Brenda Lee ao ativismo não passou despercebida. Em 1996, ela recebeu o prêmio "Heroína da Resistência" do Grupo Gay da Bahia, uma das organizações mais antigas de defesa dos direitos LGBTQ+ no Brasil. Esse reconhecimento consolidou seu papel como uma das principais defensoras dos direitos das travestis e das pessoas vivendo com HIV/AIDS.
“Brenda foi uma pioneira e uma guerreira. Sua coragem e determinação abriram caminhos e mudaram vidas. Sua contribuição para a nossa comunidade é imensurável”, Luiz Mott, fundador do Grupo Gay da Bahia.
O futuro, porém, não reservou um desfecho feliz para a ativista. No dia 31 de maio de 1996, o jornal Folha de São Paulo, estampou a notícia: “Morto travesti que cuidava de aidéticos”. Dias antes, Brenda havia denunciado à polícia que um de seus cheques fora clonado. Seu corpo foi encontrado dentro de um kombi, num terro baldio entre São Paulo e Mariporã. As evidências de tiro na boca e no peito marcaram à polícia os sinais de assassinato por vingança.
Brenda nos deixou aos 48 anos. Na época, o Palácio das Princesas atendia a 27 pacientes e recebia uma ajuda mensal de R$ 15.000,00 da Secretaria de Estado da Saúde, de São Paulo. Sua morte foi um golpe duro para a comunidade LGBTQ+, mas sua memória continua a inspirar novas gerações de ativistas e defensores dos direitos humanos.
“A Brenda era uma mãe para todas nós. Ela nos deu uma nova chance quando ninguém mais acreditava em nós”, Maria Eduarda, uma das primeiras moradoras da casa.
A comunidade deve cuidar da comunidade
Brenda Lee viveu uma vida de desafios e conquistas. Sua história é um testemunho da resiliência humana e da capacidade de mudar o mundo ao nosso redor. Ela não apenas cuidou dos marginalizados, mas também lutou para que tivessem voz e visibilidade. O "anjo da guarda das travestis" deixou uma marca indelével na história do Brasil e na luta pelos direitos humanos.
Ninguém Nasce Herói
“Chuvisco vive em um futuro onde o Brasil já não é mais um lugar seguro: o país está sob o comando do Escolhido, um líder religioso que dissemina o ódio contra as mais diversas minorias. Porém, o jovem e seus amigos estão dispostos a tentar mudar sua realidade - por mais difícil que seja. Afinal, ninguém nasce herói. Mas isso não nos impede de salvar o mundo de vez em quando.
“O simples ato de distribuir livros na rua é visto como rebeldia. Esse foi o jeito que Chuvisco encontrou para resistir e tentar mudar a sua realidade, um pouquinho que seja. Outro perigo que precisam enfrentar enquanto tentam viver sua juventude são as milícias urbanas, como a Guarda Branca: seus integrantes perseguem diversas minorias, incentivados pelo governo. É esse grupo que Chuvisco encontra espancando um garoto nos arredores da rua Augusta. A situação obriga o jovem a agir como um verdadeiro super-herói para tentar ajudá-lo ― e esse é só o começo” — sinopse da editora Seguinte.
Ninguém Nasce Herói é o meu livro nacionl favorito. Além de tudo, sua história conta como a comunidade LGBTQIAPN+ deve ter o senso de cuidar de cada um dos seus.
Eu, Ela e Ele
Vítor, um homem aparentemente com a vida resolvida, enfrenta um dilema quando desenvolve sentimentos por Adam, um rapaz gay com cicatrizes emocionais. A harmonia entre Vítor, sua noiva Emma e Adam é testada, com emoções, preconceitos e limites do amor próprio em foco. A história aborda temas delicados, como homofobia e saúde mental, e oferece uma leitura intensa.
“O livro tem um enredo muito intenso e bom. Aborda saúde mental, e mostra como o apoio familiar ou a falta dele é muito importante para o desenvolvimento da pessoa.” — Julia Aguiar, leitora.
O amor deveria ter limites? Mesmo que não responda, Do Começo ao Fim arrisca-se em questionar
Já vou avisando: Do Começo ao Fim não é um bom filme. “Ah, Murillo, mas então por que recomendar ele?” Porque, apesar de ser ruim, tem uma ousadia única no cinema nacional, a de questionar a própria validade do amor. E, dessa vez, não é necessariamente uma indicação, mas uma conversa sobre a temática do filme.
Do Começo ao Fim é do direto Aluizio Abranches (Um Copo de Cólera, Bem Casados), e foi lançado em 2009. No elenco, grandes nomes como Fábio Assunção e Júlia Lemmertz.
O filme compreende a passagem do tempo entre 1986 a 2008, contando a história dos personagens Francisco e Tomaz, irmãos apenas por parte da mãe, Julieta (Júlia Lemmertz). São meninos cobertos por privilégios de elites. Brancos, masculinos, educados mais que a média e filhos de pais ricos.
Os dois desenvolvem um laço de união íntimo desde sempre. À medida que crescem, tamanha intimidade levanta dúvidas nos pais quanto ao rumo que esse relacionamento entre irmãos pode tomar.
Na vida adulta, as coisas se confirmam e Tomaz e Francisco assumem um romance incestuoso. Infelizmente, o filme patina bastante na tentativa de retratar essa situação. Diálogos infantilizados, situações irreais, falta de coesão no encadeamento de acontecimentos. Além da aparente única trilha sonora enjoativa, que tenta fazer tudo parecer bonito e sublime.
Porém, a maior falha de Do Começo ao Fim é justamente não trabalhar a sua principal questão: o incesto entre os dois jovens. O filme não se aprofunda nas complexas nuances emocionais que uma situação dessa exige. A relação entre os dois simplesmente acontece, como se nada estivesse acontecendo para ninguém. Exceto para o próprio espectador.
Ver os dois irmãos nus, se entregando à paixão, é extremamente desconfortável (sim, há cenas de nu frontal). Então, surgem as dúvidas. Os privilégios sociais que têm tornam a situação mais aceitável? O fato de serem homens e não gerarem filhos, tornam o incesto mais ignorável? Infelizmente, o enredo vira as costas para tudo isso.
Os dois, mas principalmente Francisco, o irmão mais velho, é dominado por um senso de cuidado e proteção excessivos para com Tomaz. A impressão que fica é de posse, motivada por alguma lacuna emocional que precisa ser preenchida. Já Tomaz se sente num lugar de conforto, onde não precisa se esforçar para nada, apenas avançar para conquistar seus sonhos.
Entretanto, a questão que persiste: amor é amor, mas, como todas as coisas na vida, amor também precisa de limites. Talvez o amor, mais do que qualquer outra emoção.
Como escrever personagens LGBTQIAPN+ que ficarão por muito tempo na mente de seu leitor
Todo escritor quer escrever aquele personagem memorável. Mas quando a gente olha pro cenário da literatura LGBT+ contemporânea, vamos combinar que a gente encontra mais personagem chato, ingênuo demais ou confuso do que marcante. Vamos conversar sobre isso? Dê o play!
Maurice: A Revolução Romântica Disfarçada em Realeza Vitoriana
Ah, "Maurice", de E. M. Forster, um livro que faz você se perguntar se a monarquia vitoriana era tão reprimida quanto o autor quer que acreditemos ou se eram apenas todos muito bons em fingir. Escrito no início do século XX, mas só publicado em 1971, este romance é como um vinho fino que Forster deixou envelhecer em sua adega literária, esperando que a sociedade estivesse pronta para saboreá-lo. Spoiler: ainda não estava.
Nosso protagonista, Maurice Hall, é um jovem britânico que vive a típica vida de um homem de classe média-alta na Inglaterra Eduardiana, que é quase tão emocionante quanto assistir a tinta secar. Maurice, que inicialmente parece mais preocupado em manter as aparências do que em descobrir sua verdadeira identidade, encontra-se em uma jornada de autodescoberta e amor que desafia as normas sociais da época. Claro, porque um romance vitoriano não seria completo sem um pouco de angústia e repressão sexual.
Agora, a cereja no topo deste bolo de angústia é Clive Durham, o amigo universitário de Maurice, que o conduz em uma dança complicada de amizade e amor não correspondido. Clive é o tipo de personagem que faz você querer gritar "Decida-se, homem!" enquanto ele alterna entre declarações de amor apaixonadas e um recuo total para a zona da amizade, tudo em nome de manter as convenções sociais. E quando Maurice finalmente começa a se aceitar, entra em cena Alec Scudder, o atraente guarda-caça, que transforma a vida de Maurice em uma novela apaixonada e clandestina.
Forster nos brinda com uma narrativa que, embora às vezes possa parecer arrastada, é rica em nuances e emoções. Ele expõe, sem medo, a hipocrisia da sociedade da época e a luta interna de seus personagens. E é claro, o final, que foi revolucionário para a época, oferecendo uma esperança de felicidade genuína para Maurice e Alec. Uma reviravolta que deve ter feito os leitores conservadores engasgarem com seu chá da tarde.
Em suma, "Maurice" é uma leitura obrigatória para aqueles que apreciam uma boa crítica social envolta em um romance que, apesar das limitações de sua época, ainda ressoa com a luta pela aceitação e amor verdadeiro. Forster, com seu humor sutil e habilidade narrativa, nos convida a olhar além das aparências e a celebrar a autenticidade, mesmo quando isso significa quebrar todas as regras.
Muito obrigado por ler mais essa edição da Newsletter Ganimedes!
Nos vemos na próxima. Um abração :D
Murillo Costa